TRAVESTIS NOS ESPAÇOS DE AXÉ
- Ristefan Reis

- 18 de nov.
- 4 min de leitura
Ristefan Reis - Cientista Social em formação
e-mail: ristefank@gmail.com

Eu vislumbro uma grande porta de separação entre a realidade colonial e a decolonial dentro do terreiro, como se houvesse duas realidades distintas. Ao passar por essa porta, adentramos em um ambiente livre, leve, ancestral e festivo, onde os sorrisos iluminam o espaço. Os movimentos convertem-se em dança com giros e um compasso diferente, transformam-se em som, voz e saudações aos mais velhos, em respeito.
Tudo vira axé no espaço de axé, onde todos são bem-vindos e tratados de forma amorosa, pois o que importa é o seu Ori.
Essa é a fantasia que criei de uma porta mágica a partir do mundo real. Contudo, a realidade é outra, pois o colonizador fez seu credo respingar profundamente na sociedade brasileira. Isso se reflete na filosofia do terreiro, que muitas vezes reproduz a sexualização de corpos, enxergando mais a genitália do que conferindo a devida importância ao Ori. Assim, perpetuam-se preconceitos como a misoginia, o machismo, a LGBTfobia, a transfobia e outros resquícios da colonização.
Lendo as pesquisas da lyalorixá Nilza Meneses, autora do artigo: Algumas reflexões sobre a transexualidade nas religiões afrobrasileiras e as relações com a filosofia do Ifá (Religião Tradicional Iorubá): Acomodações e Ambiguidades de 2024, que aborda com cuidado a temática de mulheres transexuais e travestis nos terreiros de axé, reflito sobre a complexidade do acolhimento e as atividades que podem ser desenvolvidas. Afinal, se o foco for somente na genitália, perde-se o propósito de acolher alguém que questiona o binarismo social para se reinventar e reivindicar quem é.
A pesquisadora e lyalorixá Fernanda de Moraes da Silva (2024), autora do livro Matritraviarcado: a decolonialidade do Candomblé tradicionalista, traz luz às mulheres transexuais e travestis em terreiros. Ela é a primeira voz a dissertar sobre o assunto, sendo uma travesti que oferece sua perspectiva e cria o termo Matritraviarcado. Este termo é a forma de romper com o pensamento excludente que empurra mulheres potentes e transcestrais para a margem e que, agora, se levantam com determinação para serem quem são em um espaço de desenvolvimento e conexão, sem o marcador colonizador para questionar suas existências. Silva (2024, p. 153) acrescenta que a "transfobia é todo e qualquer tipo de preconceito, discriminação, aversão, rejeição, ódio, medo ou abjeção de pessoas transexuais e travestis".
As travestis muitas vezes são pegas pelas garras da estética para performar uma feminilidade cisheteronormativa a fim de conseguir ocupar esses espaços e conquistar responsabilidades dentro do axé, como o cargo de sacerdotisa, e, com isso, "passam batido", sem que as pessoas percebam sua identidade travesti. É crucial entender que cada travesti e transexual expressa sua feminilidade de forma singular. Existe uma ação política fundamental em dizer ser travesti, pois isso leva a outras a mensagem de que existem possibilidades de galgar esses espaços e desenvolver-se plenamente.
Fico pensando sobre a receptividade das pessoas de terreiros com travestis não binárias (que não correspondem à expectativa de um comportamento e estética cisheteronormativo) e, como eu, que sou uma travesti de barba, seria acolhida nesses espaços. Eu teria as mesmas oportunidades de desenvolvimento por ser uma mulher de barba?
Querer um terreiro diverso é um desejo nobre, mas para que isso ocorra é necessário desmembrar o binarismo para abrir as possibilidades de expressão e existência. É preciso que o uso do banheiro não seja uma questão, assim como ser "rodante" não pode ser colocado como limitador de gênero. É melhor dividir as tarefas não por gênero, e sim por capacidade, e diversificar quem canta e toca os atabaques, para que as travestis estejam em lugar de exercício da sua transcestralidade, ocupando o terreiro com o Matritraviarcado.
Retirar o pensamento binário do terreiro naturaliza os espaços para travestis, pessoas não binárias, homossexuais, bissexuais e outres. Afinal, se é um lugar acolhedor e seguro para travestis e transexuais, é um espaço confortável para todes.
Concluo por aqui, pois este é um assunto que precisa de muito diálogo e prática em terreiros e fora deles, para que se torne um reflexo social. Fico cansada de tanta teoria e pouca prática. Contudo, sinto-me muito feliz com o movimento a partir da filosofia africana Ubuntu (eu sou porque nós somos), por ser um espaço onde travestis compartilham suas trajetórias e conquistas dentro e fora dos terreiros, falando umas para as outras.
Neste espírito, sob a liderança de lyá Fernanda de Moraes da Silva, foi criada a Conexão Nacional de Mulheres Transexuais e Travestis de Axé (CONATT). É lá que o Matritraviarcado se fortalece, autorrepresentando-se com escrevivência e crescendo e se arvorando em suas lutas para invadir os espaços que são nossos, como os espaços de axé.
Referências
MENESES, Nilsa. Algumas reflexões sobre a transexualidade nas religiões afrobrasileiras e as relações com a filosofia do Ifá (Religião Tradicional Iorubá):Acomodações e Ambiguidades. Disponível em: https://docs.google.com/document/d/1YnjJAtzhvNeU4IMhcgNEg9WXmuEL1lLH7E_zAYbwkc/edit?tab=t.0 . Acesso em: 18/11/2025.
SILVA, Fernanda de Moraes da. Matritraviarcado: a decolonialidade do Candombé tradicionalista. Brasília, DF: Ed. da Autora, 2024. Disponível em: https://pt.scribd.com/document/730674217/Matritraviarcado-a-decolonialidade-do-Candomble-tradicionalista. Acesso em: 18/11/2025




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