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IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO NA ERA DA NECROPOLÍTICA: AS GRADES DOURADAS DA LIBERDADE?

Edison Luís dos Santos (ECA-USP)


Imagem gerada por IA, com base em descrição                    fornecida pelo autor
Imagem gerada por IA, com base em descrição fornecida pelo autor

A fim de estimular o diálogo pertinente no blog Egbé Irawô, quero me servir inicialmente da epígrafe de Frantz Fanon para ressoar como um eco perturbador dos limites terminológicos, educacionais e existenciais contemporâneos:

 

O colono não se contenta apenas com a posse física do colonizado. Ele vai mais longe, exigindo que o colonizado se reconheça na imagem que lhe é imposta, que aceite a inferioridade como uma verdade ontológica.” (Fanon, 1968. p. 43)

 

Na era da necropolítica, a identidade deixa de ser apenas uma construção cultural e passa a ser um marcador de vulnerabilidade diante do poder soberano que decide quem vive e quem morre. A representação, por sua vez, torna-se um campo de disputa simbólica onde corpos racializados, silenciados e marginalizados são constantemente estetizados, criminalizados ou apagados. A necropolítica opera pela gestão da morte e do sofrimento, transformando sujeitos em alvos, cifras ou espectros. Nesse contexto, a identidade não garante proteção – ela pode ser usada como justificativa para exclusão. A crítica decolonial propõe romper com essas lógicas, reivindicando formas plurais de pertencimento e narrativas insurgentes que desafiem o monopólio da representação e devolvam agência aos corpos historicamente subalternizados.

A categoria de “identidade”, tão central nas lutas políticas modernas por reconhecimento, revela suas fissuras constitutivas quando confrontada com a arquitetura do esgotamento corporal. Sua adoção estratégica como “identidade negra” ou “identidade periférica” opera uma paradoxal ratificação da própria lógica classificatória que o projeto colonial forjou para fins de exploração. Ao reivindicar um lugar no tabuleiro das identidades reconhecíveis, os movimentos sociais arriscam-se a entregar ao Estado aquilo que ele mais precisa para gerir populações: unidades legíveis e administráveis. Esta dinâmica, analisada por pensadores como Stuart Hall, demonstra como a identidade é sempre um jogo de inclusão e exclusão, onde a afirmação de um “nós” pode solidificar as fronteiras que deveriam ser questionadas e apagar diferenças internas cruciais de classe, gênero e sexualidade. O Estado, herdeiro direto da razão utilitária colonial, é perito em transformar demandas por identidade em dados para políticas públicas – um processo que pode conceder certa humanização jurídica sem jamais questionar a estrutura material que reduz certos corpos a meros instrumentos de produção. O limite mais profundo da identidade, portanto, está em sua incapacidade de dar conta daquilo que é o alvo primário da máquina de esgotamento: a pura materialidade corporal, o cansaço, a dor e o prazer que antecedem e excedem qualquer narrativa identitária.

De modo similar, a política da “representação” – a batalha por visibilidade na mídia, na política e na cultura – mostra-se como uma ‘faca de dois gumes’. A conquista de espaços de representação é frequentemente concedida como um prêmio de consolação que mascara a permanência das estruturas de exploração material, criando o que a pensadora Wanessa Santana critica como “representatividade sem redistribuição”. Esta representação pode gerar uma ilusão de inclusão que, na prática, anestesia a urgência de transformações econômicas radicais. Além disso, a visibilidade conquistada vem acompanhada de uma hipervigilância sobre a performance daqueles que alcançam esses espaços. O artista, o político ou o intelectual racializado carrega o fardo impossível de representar toda uma coletividade, sob a constante ameaça de ser julgado como “não autêntico” o suficiente – uma sofisticada forma contemporânea de disciplinamento e domesticação do ser. O preço final da representação é muitas vezes a necessidade de traduzir-se para os códigos do poder dominante, um processo que inevitavelmente suaviza arestas, domestica a raiva e neutraliza a potência disruptiva da diferença radical, tornando-a assimilável pelo sistema que pretendia criticar.

Em face desses limites estruturais, torna-se imperativo imaginar estratégias políticas que operem para além do binômio identidade/representação. O trabalho do teórico Fred Moten oferece um caminho fértil ao sugerir a “fuga” e a “performance da recusa” como gestos radicais que buscam criar novos modos de existência à margem das grades de leitura do Estado e do capital. Esta perspectiva desloca o eixo da luta política do reconhecimento para a construção de autonomia comunitária, do demandar visibilidade para “o criar mundos novos”. São as práticas dos terreiros, das ocupações, das cooperativas e das rodas de samba – espaços onde a vida se reproduz seguindo lógicas outras, não utilitárias. O abolicionismo penal, tal como formulado por Angela Davis, encapsula esta superação ao demandar não uma reforma do sistema prisional ou policial, mas sua completa abolição. Trata-se de um projeto que recusa terminantemente jogar o jogo da identidade e representação dentro de instituições cuja gênese e função histórica são inextricáveis da lógica necropolítica de gestão de corpos racializados. A verdadeira libertação, portanto, começa não quando se é finalmente visto e reconhecido pelo poder, mas quando se constrói comunidades onde esse poder se torna cada vez mais irrelevante para a definição do valor da vida humana.

Em última análise, a sabedoria contida no provérbio iorubá “Ìgbà kan ni igi ò lè gùn; àgbà kìí pẹ́ nílé Ọba”[1] oferece o caminho para transcender os impasses da política de identidade e representação. Ele nos ensina que a libertação autêntica não reside no indivíduo isolado que busca reconhecimento dentro do palácio do poder colonial – um jogo que ratifica as regras do opressor. Pelo contrário, a verdadeira força emerge da floresta, da construção de comunidades autônomas e solidárias que operam sob uma gramática própria de interdependência. Neste modelo, a representação deixa de ser uma delegação de voz para tornar-se uma expressão dialógica e constantemente sustentada pelo coletivo. A identidade, por sua vez, desloca-se do self para a rede de relações que o constitui. Assim, a descolonização deixa de ser uma demanda por inclusão no projeto inacabado da modernidade e transforma-se na criação radical de novos mundos, onde a vida não precisa mais ser validada pelo olhar do soberano, pois já é plenamente afirmada na potência comunitária que a sustenta.

 

Referências

 

DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2018.

FANON, Frantz. Peles negras, máscaras brancas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2008.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. In: Artes & Ensaios, Rio de Janeiro, n. 32, p. 123-151, dez. 2016.

MOTEN, Fred. Consentimento não é o único jeito de ser negro e livre. In: No universo do mais-que-preto: a arte de Fred Moten. Org. Jota Mombaça, Miguel Bueno. São Paulo: Cobogó, 2021. p. 15-28.

OLAWALE, Funmilayo. (Org.). Provérbios da cultura yorubá: sabedoria ancestral africana. Salvador: EDUFBA, 2018.

SANTANA, Wanessa. Representatividade não é redistribuição: os limites da política de identidade. Revista Geledés, São Paulo, 15 mar. 2021. Disponível em: https://www.geledes.org.br/representatividade-nao-e-redistribuicao-os-limites-da-politica-de-identidade/. Acesso em: 28 out. 2024.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida et al. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.


[1] “Uma só árvore não forma uma floresta; um ancião não permanece sozinho no palácio do Rei”. (OLAWALE, 2018. p. 67)

 
 
 

1 comentário


Edison Santos
Edison Santos
11 de set.

Neste artigo, destaca-se especialmente a valorização das práticas comunitárias autônomas como alternativas de resistência e criatividade, apontando para saídas coletivas que reimaginam o papel da identidade, representação e pertencimento fora das lógicas do poder colonial. Axé Mojubá!

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