ASAS CORTADAS OU VOOS LIVRES? UMA CRÍTICA DA PEDAGOGIA À LUZ DE MESTRES VERDADEIROS
- Edison Luís dos Santos

- 21 de ago.
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Atualizado: 22 de ago.
Edison Luís dos Santos (ECA-USP)

A frase de Agostinho da Silva citada por Ìyákemi e Mantovanni no blog Egbé Irawô[1] que serve de epígrafe a esta reflexão ressoa como um eco profético e perturbador dos dilemas educacionais contemporâneos:
"Mestres vulgares são como passarinheiros que cortam as asas das aves para que não voem até onde seus mestres não possam alcançá-las. Verdadeiros mestres são como cuidadores de aves que se esforçam por vê-las banhar-se no azul dos céus e subirem tão alto que toda a terra se desdobre e se revele a seus olhos. Mestres vulgares trabalham para arrebanhar escravos. Verdadeiros mestres trabalham para libertar espíritos".
A frase de Agostinho da Silva que contrapõe os “mestres vulgares” (que cortam as asas dos pássaros para que não voem além do seu alcance) aos “verdadeiros mestres” (que desejam ver seus alunos banharem-se no azul do céu e voarem livres) sintetiza uma poderosa crítica à pedagogia autoritária e hierárquica. Essa visão impacta diretamente a reflexão de Jacques Rancière em O mestre Ignorante, onde ele questiona a tradição pedagógica baseada na suposta desigualdade natural entre as inteligências do mestre e do aluno, propondo a igualdade das inteligências como princípio fundamental para a emancipação intelectual.
Rancière descreve o que chama de “mito pedagógico”: a crença de que existe uma hierarquia natural entre os “inteligentes” e os “ignorantes”. Essa crença fomenta uma educação explicativa que, sob o pretexto de ensinar, embrutece, pois reforça a presunção da inferioridade intelectual do educando. Em consonância, Agostinho da Silva denuncia o educador que atua como passarinheiro, limitando o voo dos estudantes às próprias limitações, enquanto o verdadeiro mestre é um cuidador que se empenha em libertar os espíritos para que voem alto.
Essa tensão entre tutela e emancipação se reflete em diversas tradições literárias e culturais. Na literatura brasileira, especialmente em Grande sertão: veredas, Guimarães Rosa aborda a transformação contínua do ser humano, valorizando a inacabação e a mudança como virtudes. Essa dinâmica lembra a proposta de Rancière de que a inteligência é igual em todos e que a emancipação consiste em reconhecer essa igualdade e exercê-la, rompendo com as estruturas que impõem inferioridade.
Na tradição oral iorubá, a pedagogia é baseada em provérbios e narrativas que não explicam o saber, mas provocam o esforço interpretativo e criativo do aprendiz. Vejamos os provérbios: “Ọkàn ríran ju ojú lọ” (O coração pode ver muito mais do que os olhos) e “Ajejé owo kan ko gbe igbá de orí” (Com apenas uma mão não se pode conduzir uma cabaça cheia ao alto da cabeça); eles incitam a sabedoria prática e a necessidade da cooperação e do esforço conjunto, ao invés da explicação ou imposição de conhecimento. Essa tradição valoriza a opacidade produtiva do saber e rejeita o modelo pedagógico do mestre que tudo explica e, assim, limita.
Poetas brasileiros também exploram temas paralelos. João Cabral de Melo Neto, em A educação pela pedra, propõe uma pedagogia em que o aprendizado emerge do contato direto com o material, sem a mediação explicativa do mestre; uma pedagogia da experiência criativa, que ressoa com a ideia de Rancière do mestre ignorante que ensina o que desconhece, confiando na capacidade do aluno de aprender por si mesmo. Carlos Drummond de Andrade, refletindo sobre a escola, conclui que “a única escola que funciona é aquela onde todos aprendem de todos, sem mestres e alunos demarcados”, sublinhando a importância da igualdade na relação educativa.
Ambos os pensadores rejeitam a ideia de que a libertação intelectual possa ser imposta ou transmitida; ela deve ser verificada no encontro individual entre mestres e alunos, que são tratados como iguais em inteligência. A educação, portanto, não é um sistema para ser institucionalizado da maneira convencional, mas uma prática política e ética de reconhecimento da capacidade universal para o pensamento crítico.
A relevância contemporânea da crítica de Rancière e Agostinho da Silva se intensifica diante da sociedade pedagogizada atual; a lógica explicativa e a algoritmização da vida cotidiana extrapolam a escola e se impõem como modo de relação em todas as esferas do tecido social, muitas vezes reproduzindo desigualdades e a infantilização intelectual. Dessa forma, o ensinamento não é emancipatório, mas embrutecedor, semelhante ao gesto do “mestre vulgar” que limita e embrutece.
Por outro lado, a fabricada autoridade do mestre emancipador dialoga com o papel do contador de histórias nas culturas orais, como na tradição iorubá, onde o savoir-faire é menos a transmissão do conhecimento puro e mais a capacidade de ativar o pensamento, a reflexão e a sabedoria coletiva. O provérbio iorubá “Tí èyàn yoo bá huwa kan Eni ó ko Ranti esan kan ola” (Antes de um ato de hoje, deve-se considerar o resultado de amanhã) ensina que a sabedoria é um processo contínuo e coletivo, que exige responsabilidade e autonomia do aprendiz.
A metafórica oposição das asas cortadas e do voo livre, portanto, não é apenas uma denúncia ética da prática pedagógica autoritária, mas uma convocação para repensar a pedagogia na sua dimensão política mais profunda: o reconhecimento da capacidade igual e irrestrita dos seres humanos para pensar, criar e transformar o mundo. Educar libertando, para além da reprodução da hierarquia intelectual, é tarefa que requer coragem e renovação constante.
Assim, o verdadeiro desafio para educadores e intelectuais é decidir entre manter práticas que arrebanham “escravos” intelectuais (limitando seus voos) ou assumir o compromisso de serem cuidadores que incentivam o voo ousado, o voo que frutifica nas infinitas possibilidades da inteligência universal e inacabada.
Por fim, concluo esta reflexão inspirada em Agostinho da Silva com outra frase seminal: “O verdadeiro discípulo não é aquele que cita, mas aquele que compreende o silêncio de onde a citação nasceu”.
[1] “Mestres vulgares e mestres verdadeiros”. In: https://www.egbeirawo.com.br/post/mestres-vulgares-e-mestres-verdadeiros.
Referências bibliográficas
ADEFUYI, Adewale; OLUWOLE, Adetokunbo. (Org.) Corpus literário de Ifá: tradição oral iorubá. São Paulo: Instituto Cultural Yorubá, 2008.
CABRAL DE MELO NETO, João. A educação pela pedra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1966.
DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Tempos de escola: contos, crônicas e memórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
LOURENÇO, Eduardo. Agostinho da Silva: um homem extraordinário. Lisboa: Gradiva, 2006.
OLAWALE, Funmilayo. (Org.) Provérbios da cultura yorubá: sabedoria ancestral africana. Salvador: EDUFBA, 2018.
RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante: cinco lições sobre emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
SILVA, Agostinho da. Textos pedagógicos I. Lisboa: Âncora Editora, 1999.




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