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VOZES SILENCIADAS: A AUSÊNCIA DOS SABERES TRADICIONAIS NAS UNIVERSIDADES

Ronilda Iyakemi Ribeiro 



Imagem: Mandala árvore da vida/ebay
Imagem: Mandala árvore da vida/ebay

Quando ingressei na Faculdade de Psicologia da Universidade de São Paulo no início de 1964, jamais imaginaria chegar ao ano de 2025 ainda nesse lugar. Distraidamente, conquistei a condição de docente pouco depois de concluir o curso de graduação. Jamais imaginaria atravessar décadas militando por direitos humanos e justiça social em espaços acadêmicos e espaços sociais. Muito menos imaginaria que estava destinada a mim a tarefa de transitar entre disciplinas, especialmente Psicologia e Antropologia, entre religiões, especialmente  Catolicismo, Espiritismo, Umbandomblé e Religião Tradicional Iorubá. Como poderia imaginar que casaria duas vezes e teria prole numerosa de crianças brancas e negras, nascidas de meu ventre e de meu coração. Que viria a ser profunda conhecedora do saber tradicional iorubá e ialorixá de uma religião africana. Jamais imaginaria! A vida me surpreendeu! 

Nasci em berço de madeira tosca. Perdi a conta do tanto de espaços de forró, terreiros de samba e casas de axé, cujos tambores aliviavam um sentimento de nostalgia de causa ignorada por mim e substituíam a nostalgia por alegria exuberante.

Teve uma vez que minha chefe, a Profa. Maria Helena Souza Patto, psicóloga educacional revolucionária na construção da Psicologia que (graças a Deus) temos hoje, me disse que minha cabeça era o Samba do Crioulo Doido. Era mesmo. (Graças a Deus) continua sendo. Por décadas ansiei termos os debates que temos hoje. Fui me instruindo para isso em coletivos de diálogo interdisciplinar e de diálogo inter-religioso. Em texto publicado sobre diálogo inter-religioso, me referi à demanda fundamental que todos temos de dialogar. Observando a dinâmica de relações de religiões  afrodiaspóricas entre si me dei conta de precisarmos de diálogos inter-religiões e inter-disciplinas, assim como precisamos de diálogos “intra-religiões” e “intra-disciplinas”: seja no âmbito das religiões afrodiaspóricas, cristãs ou islâmicas, há sempre a necessidade do diálogo na interioridade de cada uma delas. Evidente é o fato de ocorrer o mesmo com as disciplinas: a psicologia precisa dialogar, por exemplo, com a antropologia e, ao mesmo tempo, as muitas psicologias precisam dialogar entre si.

Ainda não me referi aos saberes tradicionais e populares, corpos de saberes que preservam em si o Legado Ancestral de linhagens negras, brancas, de povos originários, de asiáticos... A lógica do diálogo realizado inter e intra é a mesma.

Agora, demos mais um passo para aprofundar no Sistema que inclui as dimensões inter e intra do diálogo: a dimensão subjetiva. Diz o africano que são muitas as pessoas da Pessoa. Diz Mário de Andrade “Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta. Mas um dia afinal me encontrarei comigo... Tenhamos paciência, andorinhas curtas”. E agora não tenho mais dúvida alguma a respeito do que diz Enrique Pichon-Rivière, Pai da Etnopsiquatria Latino-americana: essas pessoas que me habitam podem estabelecer entre si  relações dialógicas e dialéticas. Mas (infelizmente?) também podem estabelecer relações dilemáticas. Daí, minha capacidade de dialogar com o diferente dependerá da qualidade de relações que minhas pessoas estabelecem entre si em minha subjetividade. No entanto, sem o embate das diferenças nas interações sociais, que metamorfoses poderiam sofrer minhas pessoas internas?

Ouvindo meus colegas do Movimento de Encontro de Saberes fico muito feliz porque cada um de nós traz um raio de uma roda que queremos construir juntos e fazer rodar. Ouço meus companheiros e companheiras e meu coração se enche de esperança. Mais que isso, a fala deles revigora minha força de luta. Sim. Precisamos garantir a laicidade da Ciência. Mas sem o temor de perdermos os privilégios que usufruímos se trouxermos para o espaço acadêmico as vozes dos silenciados. Há muito vivemos mutilados. Viveremos mutilados para sempre? Em nossas mãos temos, no momento presente, o compartilhamento do ideal de nos posicionarmos contra o conhecimento hegemônico, o racismo, o colonialismo e a colonialidade.

Nós, do Movimento Encontro de Saberes, abertos ao diálogo, esperançosos no poder da ação conjunta, tratemos de transformar nossas varandas em vizinhanças!     

 
 
 

1 comentário


Ristefan Reis
Ristefan Reis
30 de set.

Que trajetória linda, que privilégio poder conhecer melhor sua história e uma das suas fontes de esperança nas pessoas. 💚

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